domingo, 1 de setembro de 2013

Morella

E não guardei memória de tempo ou de lugar, e as estrelas da minha sorte sumiram do céu e desde então a terra se tornou tenebrosa e suas figuras passaram perto de mim como sombras esvoaçantes, e entre elas só uma vislumbrava: Morella.
Os ventos do firmamento somente um nome murmuravam aos meus ouvidos e o marulho das ondas sussurra "Morella!”.
Edgar Allan Poe

Morella figura aparentemente singela, triste, frágil, fria. Mas poderosa em sua erudição e melancolia, ávida conhecedora e habilidosa das artes ocultas, buscava incessantemente penetrar na profunda identidade de sua alma e na de seu bem-amado. O fato de envolver-se tão completamente na primitiva literatura germânica consumiu-a e a seu querido por muitos anos, e a opressão de sua personalidade misteriosa acabou por quase enlouquecê-lo e a desejar-lhe sua morte. Apenas para findar-se aquele horror e tortura, por também estar ao lado de uma mulher a quem jamais amou realmente. 

Inconformada com isso, pois se julgou ter dedicado sua vida aquele homem, aquele ser, aquela criatura tão preciosa, lançou-lhe um feitiço em sua morte, que se reproduziria de maneira inevitável na vida de seu marido. Sua vida acabaria para dar lugar à outra vida, uma menininha, fruto da relação ardente entre eles, o único elo que lhes sobraria. Num novo ser, para o mesmo amar com fervor. Mas o seu amor duraria pouco e ele carregaria pra sempre a mortalha do pesar. E então ela se foi, apenas com um leve tremor, tão suave e plácida feito um anjo. 

E sua garotinha cresceu e resplandeceu, a cada dia mais linda, a cada dia mais viva... Até ele notar a semelhança, o parecer tão assustadoramente fascinante de sua queridinha com a falecida mãe. Sua voz tristemente melancólica, as pequenas mãos finas e frias, os cachos de seu cabelo, o olhar profundo e translúcido que lhe descortinava a alma quando a mesma o encarava. E principalmente, Ah principalmente! A consciência madura, a voz da experiência, as palavras da mãe morta brotando dos lábios da filha viva. 

E então o terror instalou-se sobre a alma daquele homem, que não mais consegue esquecer-se de quem já se fora, e faz o mesmo em sua paranoia, dar o nome da mãe à filha. O último nome de que se lembrarás, o último nome que sussurrarás. O nome que logo quando o ouviu lhe trouxera ardor e alegria, mas agora apenas restou o som sibilante da morte. Pois sua adorada criança ao ouvir esse som sair dos lábios de seu pai fez renascer novamente a alma de sua mãe, e foi-se levada por ela. Em seu ultimo esgar de vida o pai pode vislumbrar claramente a face da morta na expressão da viva. 

Mas o que ele deveria mesmo ter percebido foi que jamais pode ser capaz de esquecer aquela que se fora tão prematuramente, por também sua própria culpa e como isso afetou sua filhinha, que mantida em reclusão jamais teve oportunidade de viver por si só realmente. De ter uma identidade própria. Então os dois são culpados, pai e mãe por amaldiçoar aquela criança antes mesmo de ela existir, tragada pelo redemoinho de horror maquiavélico em que consistia a vida de seus abutres pais. 


SIQUARA, Isabele. 21/05/2013 




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